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A Casa do Urso Preto

O Sol aparece tímido por detrás da cordilheira montanhosa. Quem reina no tempo do amanhecer é uma névoa fina e azulada, entremeando as densas florestas de bálsamo e cerejeiras e os vastos campos de flores amarelas; o orvalho reluz sob o movimento calmo de um grupo de veados de rabo branco, enquanto inúmeros passarinhos, brincando de malabarismo chacoalham os finos capins. É hora de despertar para mais um dia no Parque Nacional Smoky Mountains.

Localizado na fronteira entre o Tennesse e Carolina do Norte, no leste norte-americano, estas montanhas são envoltas em mistérios e uma história relacionada aos índios Cherookees e imigrantes europeus. Como um grande baluarte que desponta na famosa Cordilheira Apalaches, em 1934 sua área foi transformada em Parque Nacional, com direito a ser identificada como Reserva da Biosfera e Patrimônio Mundial, tal é sua importância ambiental e habitat de dezenas de aves, répteis e mamíferos, entre eles o urso preto, indubitavelmente considerado o símbolo da região.

Muito antes dos europeus aportarem em terras norte-americanas, a região conhecida como enseada Cades pertencia à nação dos índios Cherookees, que mantinham ali uma área de manutenção de fauna para caça. A chegada de ingleses e irlandeses principalmente, em 1818, não foi inicialmente bem recebida pelos moradores nativos; os recorrentes conflitos acabaram por apaziguar os ânimos, sendo que os Cherookees assimilaram muito dos hábitos dos colonos, construindo casas, frequentando escolas e criando uma linguagem escrita. Contudo, a despeito desta pacificação, muitos americanos queriam ainda que os índios fossem deslocados para além do oeste do Rio Mississipi. Com a descoberta de ouro nas terras Cherookees e a posse de Andrew Jackson na presidência do país, o povo indígena viveu um dos seus maiores declínios, com perda de território, doenças e o êxodo de mais de 14 mil índios, em 1938. Isto tornou a famosa enseada num reduto de posse desenfreada de terras e uso abusivo das riquezas naturais. Contudo, alguns índios se refugiaram nas terras mais desérticas da Montanhas, driblando o exército e autoridades locais. Os recorrentes conflitos por terras destruiu ainda mais a região, outrora dominada apenas por bisões, alces e veados. Só trinta anos depois o governo aceitou a existência de tais índios dissidentes e permitiu que os mesmos se alojassem em terras do oeste da Carolina do Norte. Contudo, o espírito de Cades já havia mudado com as inúmeras guerras civis, e os novos moradores, colonos em busca de uma vida digna no campo, se tornaram cada vez mais renegados. Em 1900, inúmeras empresas madeireiras tomaram interesse pelas florestas locais, e nas décadas seguintes dizimaram mais de 60% do patrimônio florestal. Só em 1920, e a contragosto de alguns colonos por conta das necessárias desapropriações, o governo americano deu início ao movimento de transformar toda a Smoky Mountains em área de conservação permanente.

O Parque Nacional possui uma área com cerca de 300 mil acres, abrigando mais de 4 mil espécies de plantas e 130 espécies de árvores, distribuídas em cinco diferentes fisionomias de vegetação, e pode-se dizer que ali estão representados os principais tipos de floresta de todo leste norte-americano. Uma infinidade de tipos de árvores se distribuem de acordo com as altitudes das montanhas apalaches, que chega a 2024 m no pico mais alto do Parque. Ali foi construída uma grande torre chamada Clingmans Dome. No amanhecer, é possível flutuar acima das densas nuvens, sentir o vento frio esquentando um bem estar imensurável, enquanto pontas de pinheiros tipo bálsamo-abeto furam a delicada bruma que descansa sobre os vales. Caminhar nos bosques, seja de abetos, carvalhos ou qualquer outra espécie de árvore centenária, é como entrar numa catedral gótica. Imponentes, seus troncos ascendem em direção ao dossel da floresta, enquanto pequenas e delicadas flores brancas brincam de polinizar com borboletas e outros pequenos insetos. Mas não é só de poesia que as florestas da Smoky Mountains vive, principalmente quando se trata da simbiose com os mais diferentes tipos de invertebrados. Um pequeno inseto, sem asa, conhecido por adelgid foi acidentalmente introduzido no início do século XX e se tornou uma das maiores ameaças para as florestas da região, principalmente para o abeto-bálsamo, cujos bosques chegaram a ser dizimados em mais de 90%, em decorrência desse inseto que injeta uma potente toxina na seiva da árvore. Apesar de todos os esforços no controle desta praga e no plantio de abetos novos, o que se têm notado nas florestas é uma evidente alteração na composição vegetativa, com o surgimento de inúmeras herbáceas nos sub-bosques prejudicando drasticamente o ecossistema nativo. Da mesma forma, a castanha-americana era a árvore mais comum na região. Uma espécie de cancro dizimou mais de 30% dos indivíduos adultos, afetando a manutenção da espécie e por consequência diversas espécies animais, que tinham a castanha como base alimentar. Este equilíbrio nos bosques sempre foi de fundamental importância em grandes áreas, principalmente quando são diretamente condicionados pela mudança de altitude, que por conseguinte altera a precipitação. Assim, faia-americana se mistura a um tipo de bétula amarela, encontradas apenas a partir de 1000 m de altitude. Esta estratificação bem definida na vegetação contribui para que algumas espécies de fauna e flora sejam específicas e até mesmo endêmicas. Enquanto isto, pica-paus de cabeça vermelha quebram o silêncio com seus martelar compassado e as trilhas são marcadas pelos rápidos esquilos, que num vai e vem desenfreado entre os troncos lenhosos, buscam os mais variados tipos de iguarias. Cerca de 65 espécies de mamíferos vivem no parque, entre eles os tranquilos veados de rabo branco, guaxinins e marmotas. Canídeos, como as raposas vermelhas e coiotes são bem mais raros de serem avistados, assim como felinos, representados por linces e pumas; apesar de terem sido extintos por caçadores em séculos passados, os pumas ou leões-das-montanhas são relatados como presença ocasional nos últimos anos. Na calada da noite, quando o canto seco das corujas-orelhudas ecoa pelo Parque adormecido, lontras dominam a enseada Cades, conhecida originalmente como ‘Lugar das lontras’ pelos índios Cherookees. Mas nem sempre foi assim; novamente e sob os atos impiedosos dos caçadores, este pequeno mustelídeo foi extinto da região. Em 1980, o Parque reintroduziu com sucesso 140 indivíduos.

Por falar em reintrodução, pode-se dizer que um dos mais importantes trabalhos de recuperação de fauna nas Smoky Mountains se deu com o Elk (Cervus canadensis), uma espécie de alce que habitava em larga escala os inúmeros campos do Parque. Novamente, sob o avanço desenfreado da colonização em séculos passados, a espécie foi completamente extinta. Registros históricos marcam que o último alce nativo do Tennessee foi morto no século 18. Em 2001 e 2002 deu-se início a um programa experimental de reintrodução, com a ‘importação’ de cerca de 50 indivíduos, realocados no Vale Cataloochee. Com radiocolares para permitir o monitoramento de sua readaptação, a população de alces, que chega a pesar mais de 250 quilos, alcançou mais de uma centena de animais no último ano. Atualmente, voluntários a serviço do Parque diariamente trafegam  pelas estradas da região, apresentando chifres e crânios de alces, num cuidadoso trabalho de educação ambiental com os visitantes.

O final da tarde é o melhor momento para observar estes imponentes animais pastando calmamente nos campos desta área leste do Parque. Ao contrário da região de Cades, com suas extensas planícies cobertas de um capim dourado e centenas de pequenas flores, onde as montanhas dão o ar da graça na vista que se perde no horizonte, a região de Cataloochee é marcada por vales estreitos e escarpas íngremes, causando uma sensação maior de intocabilidade nestas montanhas sagradas. Enquanto a temperatura cai e as florestas são envoltas novamente pela fina névoa, os pequenos córregos descem das montanhas geladas entre blocos e paredões de um granito gnáissico pouco alterado; berço de uma das águas mais puras de todo o país, os rios atraem pescadores do estilo fly, com seu movimento suave de ir-e-vir da isca e passos suaves sobre as pedras em busca das desejadas trutas. Já  nos estreitos caminhos que levam aos mais diferentes destinos dentro das florestas temperadas, um outro ‘andarilho’ marca sua presença com passos pesados, por vezes difícil de ser avistado mas incessantemente procurado por todos os visitantes: o urso preto (Ursus americanus). Menos agressivo do que o famoso urso pardo encontrado em outras regiões dos EUA, o urso preto vive em toda extensão do Parque independente da altitude e tipo de floresta. Durante séculos foi drasticamente caçado; os índios Cherookees atribuíam grande poder ao animal, e acreditavam que comer sua carne era uma forma de assimilar tal poder. Posteriormente vieram os colonizadores e caçadores, provocando uma redução drástica na população de ursos. Atualmente, os pesquisadores estimam que cerca de 1500 indivíduos se distribuem por toda área, principalmente em Cades. Pode parecer muito, mas se considerar que tal espécie ocorria em quase todo território americano, exceto no extremo oeste, é nítido que a perda de hábitat tem confinado os animais apenas em áreas protegidas, e Smoky Mountains é certamente um dos lugares com maior densidade de ursos pretos no país. Os machos pesam cerca de 120 quilos, são onívoros mas dão preferência a castanhas, frutas e folhas verdes. Entram em sono profundo no inverno, vivem cerca de 12 anos e são extremamente ágeis para escalar árvores; sem contar que chegam facilmente a 40 Km/h numa corrida. Necessitam de grandes áreas para viver e simplesmente não se acanham com a presença de turistas. Em todo Parque existem inúmeros centros de visitantes com panfletos e dicas para uma convivência pacífica entre pessoas e ursos. Certamente uma conduta inapropriada da maioria dos turistas que buscam lazer na natureza é achar que podem alimentar um animal silvestre, e desta forma, tentam proximidade. Talvez para justificar seus gastos naquela viagem, onde o bicho se torna ‘objeto’ obrigatório de ser visto como uma peça num museu qualquer, ou então por puro desconhecido sobre os hábitos animais, o fato é que a relação homem-natureza há muito deixou de ser harmoniosa, e não são poucos os casos em todo mundo da ocorrência de conflitos com animais em vida livre.

Sem levar em consideração esta característica expansiva dos homens em querer dominar todo ser vivente e alterar os ambientes naturais em seu próprio benefício, a presença dos colonizadores na região da Smoky Mountains é marcante e histórica, e pode-se dizer que possui uma das melhores coleções de construções de madeira no leste dos Estados Unidos. Mais de 90 estruturas das vivendas, celeiros, edifícios anexos, igrejas e escolas foram preservados ou reabilitadas no Parque. Um toque humanista em meio a tanta beleza natural, e não há como negar que o resultado é magnífico. Casas centenárias e igrejas de madeira pintadas de branco contrastam com a imponência verde-escuro dos bosques, envoltos num clima de tradições e sons de banjo ecoando nas varandas, currais e sótãos.

Assim, no cair da tarde, quando os campos e encostas montanhosas são invadidos pela grande bruma azulada, as Smoky Moutains se preparam para mais uma noite, para que todos os cantos encantados da densa floresta sejam novamente dominados pelas histórias de conquistas e desesperanças, religiosidade e conflitos dos colonos, e os mistérios e lendas que outrora povoaram a imaginação dos índios Cherookees possam voltar à suas mais intricadas origens.